top of page

Deixe seu email aqui para receber novidades:

Será um prazer te enviar minhas criações!

Era preciso lembrar.

  • annitajunqueira
  • 9 de set. de 2023
  • 6 min de leitura

Atualizado: 27 de set. de 2024

Os quatro gatos se aproximaram naquela manhã como se quisessem avisar algo diferente na rotina. Miavam. Ventava forte e o barulho da chuva chegando causava calafrios na coluna. O barraco estava bem amarrado e arrumado, mas ela sabia que podia despencar a qualquer momento. Do lado da cama, uma imagem envelhecida de Nossa Senhora enfeitava aquele pequeno altar na cabeceira da cama e lhe dava a esperança de não morrer, pelo menos não naquela noite. Era São João. Os fogos lá fora estouravam à distância no ritmo de seus batimentos cardíacos. As mãos trêmulas seguravam a quarta xícara de café. O pó estava acabando e ela não conseguiria mais comprar em breve. O mercadinho era longe e suas pernas doíam. Será que ela saberia o caminho? Teria anotado as coordenadas de forma correta quando falamos? Onde morava não existia no mapa. Era um lugar de querer chegar, mas sem endereço definido. Não a via há 8 anos. Será que envelheci muito? Ela irá me reconhecer? Lembrava do cheiro dela aninhada no seu pescoço como se ela tivesse partido no dia anterior. Eu a reconheceria pelo cheiro, mesmo que seu cabelo tivesse mudado de cor. Será que ela vai gostar da minha saia? Florida e com muitos furos feitos pelos gatos que pediam colo diariamente. Deslocou-se devagar e com dificuldade da cama, que demorara mais de 20 minutos para arrumar, finalizando com uma colcha de rendas guardada no armário há anos, e caminhou em direção à mesa quadrada da cozinha que ficava a poucos metros dali. O barraco não tinha divisórias, a não ser para o banheiro, o que tornava sua vida mais fácil agora. Quando ainda era casada, a falta de privacidade na hora do sexo a incomodava, apesar do marido insistir. Preciso consertar esta cadeira quebrada. Sua filha muitas vezes acordava de madrugada pedindo água e eles tinham que interromper o único momento que ainda tinham de prazer. Preciso consertar esta cadeira quebrada. Como sentia falta de Antônio. Desde sua morte tinha aprendido a fazer muitas coisas sozinha, mas consertar móveis era algo que resistia. Isso não é coisa de mulher. Repetia a frase dele como se isso fosse trazê-lo de volta. Mal sabe ele que até privada eu já consertei. Um sorriso de canto de boca se abriu. Queria que ele estivesse aqui para abraçar a chegada da nossa filha.

Um grito lá fora a tirou dos pensamentos enquanto o café esfriava na mesa. Um carro havia derrapado e as pessoas gritavam: Morreu! Morreu! Quem morreu? De súbito tentou se levantar e com o resto da força e do equilíbrio que ainda portava caminhou acelerada até a porta e viu o que não gostaria de ter visto. Ensanguentada, dilacerada, com os olhos vidrados em sua direção e aquela multidão ao redor espiando a tragédia da sua vida. Ela estava lá, morta, atropelada, diante de todos e de si mesma. Sua gata preta, Régia, aquela que chegara no mesmo dia que sua filha completara 5 anos e a preferida de todos. Muitas vezes quando acordava de madrugada imaginando onde Mariana poderia estar neste mundão afora ela olhava para Régia e se acalmava. Outras, a gata se aproximava e se aninhava no seu pescoço libertando seu peito da angústia de viver sem controlar a vida. Paralisada diante daquele pequeno corpo peludo amoroso entregue ao chão de terra, cheio de lama e sangue, fechou a porta da casa como se aquilo não a pertencesse. Tem dor que expande aos olhos dos outros. Voltou para a mesa e se sentou na cadeira quebrada desejando que ela se despedaçasse. Ela não quebrou. E a dor aumentou. Quanto tempo falta para ela chegar? Teria se perdido no caminho? Tinha tomado todos os medicamentos esta semana na tentativa de melhorar os sintomas. Não queria que ela percebesse seus tremores. Ela era a mãe. E mães são super-heroínas. Imaginava sua filha abrindo a porta e correndo em direção a seus braços como fazia quando era menina e voltava da escola a pé. Sempre teve medo dessa volta e o mesmo medo a dominava agora. Menina, mulher, sozinha, noite, escuro, ruas estreitas. Onde morava tinha muita gente mal-intencionada. Tinha. Muita gente mal-amada. Decidiu cerzir os buracos da saia para enfeitar a ansiedade. Pegou a linha e a agulha, tirou a roupa e estendeu sobre a mesa da cozinha. Aquele pedaço de pano envelhecido mais parecia uma peneira. Sabia que em breve não conseguiria mais costurar. O tempo tinha se tornado traiçoeiro como o vizinho que tirara a vida de Antônio num domingo. Lá fora as pessoas ainda se organizavam para ensacar a sua gata e dar um fim à companheira. Era melhor assim. Pegou os óculos deixados na janela à tarde e começou. A cada movimento das mãos e agulha seus olhos ficavam ainda mais embaçados. Sentiu enjoo. Espetou-se. Parou, respirou. Era preciso fazer um acordo com o tempo. Era preciso consertar a cadeira. Era preciso reencontrar a minha filha. O silêncio lá fora do barraco se restabeleceu. O de dentro também. Deixou uma lágrima escorrer. Régia estava ensacada. A mesma lágrima que a visitou no dia da morte de seu marido. Daquele tiro que ouviu quando estava sentada naquela mesma cadeira, costurando. Já se passava um ano da partida de Antônio. E agora a gata. Quem será o próximo? Sua filha ainda não havia chegado e já passava das onze horas. Com a chuva o caminho até o morro ficava mais difícil e as condições mais raras. Lá não tinha sinal de celular. Nem sinal de vida. Estava tudo quieto agora com exceção do barulho dos morcegos em cima do telhado. Sua filha teria casado? Teria filhos? Será que precisa de dinheiro? Porque decidiu voltar depois tantos anos? Seus pensamentos oscilavam entre a vontade de abraçar a filha e o medo do que teria acontecido com ela depois daquele dia que bateu a porta e saiu gritando enfurecida no auge dos seus 18 anos. E como ela iria reagir com a notícia da morte do pai? A culpa acelerou a costura e os buracos foram se fechando no pano. A chuva aumentou e uma goteira discreta apareceu sobre a pia. Era preciso consertar o telhado. A água inundava seus pensamentos. Estava boiando, afogando. A vista cada vez pior. As pernas fracas já não sustentavam a dor de acordar só e sair pra trabalhar. Ainda trabalhava na fábrica de tecidos. Minha filha vai se orgulhar disso. Nos últimos meses, no entanto, sua patroa a tinha convocado para uma conversa. Não temos mais muito tempo, Ametista. E você sabe disso, sua doença está avançando rápido, ela disse com aquele olhar de piedade que a gente faz quando vê um animal já morto no caminho. Seria aposentada por invalidez em breve. Mas ela ainda trabalhava lá e podia provar seus mais de 40 anos de contrato com sua carteira de trabalho puída. Minha filha vai se orgulhar disso. O relógio avançava noite adentro e ela talvez tenha dormido entre os goles de café.

Acordou com a buzina da lotação pegando as crianças do bairro na esquina. Entrava uma luz diagonal pela janela da cozinha e iluminava o lugar de Antônio. Nunca mais sentara ali, na terceira cadeira da mesa. Às vezes se pegava conversando com ele e tentando entender em como tinha se metido naquela briga com o vizinho que morava duas casas pra cima na mesma rua. Que morte idiota. Com a liberação do porte de armas qualquer um se sentia no direito de definir suas próprias leis e arrancar a vida das pessoas que ela amava. O vizinho nunca tinha dado um bom dia e vivia sozinho, sempre sentado na varanda da casa, tomando cerveja, com a arma na cintura. Talvez invejasse a nossa vida. Ele continua lá e agora começou a me cumprimentar todo dia que eu volto do trabalho. Ela nunca responde. Anda firme. Quase firme. A única vez que olhou nos olhos dele depois da morte do marido foi quando caiu na rua com um saco de laranjas nas mãos voltando do mercado. Ele a ajudou a levantar, juntou as laranjas espalhadas pela calçada, colocou tudo num saco plástico que havia trazido de dentro daquela casa sombria e disse: sinto muito pela senhora.

Era tarde demais. Já começava a amanhecer. E nada de Mariana aparecer. Ela tinha dito que era naquela noite. Isso ela não poderia esquecer. Era Mariana. Isso também ela não podia esquecer. Recolocou a saia costurada e caminhou em direção à porta fechada. Lembrou-se da bolsa. Voltou até o quarto. Pegou a bolsa. E caminhou em direção à porta fechada. Lembrou-se da chave. Voltou até o quarto. Pegou a chave. Deixou a bolsa. E caminhou em direção a porta fechada. Lembrou-se da bolsa. Voltou até o quarto. Pegou a bolsa, pegou a chave. E caminhou em direção a porta fechada. Lembrou-se dos remédios. Voltou até o banheiro. Deixou a bolsa e as chaves. E caminhou em direção à porta fechada. Lembrou-se da bolsa, das chaves. Voltou até o banheiro. Pegou a bolsa, a chave, os remédios. E caminhou em direção à porta fechada. Abriu com dificuldade e saiu.

Os três gatos ficaram lá. Miando. Sem comida. Desejando que ela voltasse. Desejando que o tempo fosse mais gentil. Desejando que ela ainda lembrasse de deixar a porta aberta.


 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
Rastro de formiga

Nasci pequena e me formei grande, pelo avesso. Me misturei com as formigas Manoelas para sonhar cidades escuras, subterrâneas, proibidas....

 
 
 
Clichês (2007)

Falsos nomes. Falsas coisas. Mundo falso. Me sinto agora como um produto enlatado. Um produto Plus. Sur Plus. Resultado dessa máquina...

 
 
 

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
  • Facebook
  • LinkedIn
  • Instagram

©2020 por Mulher Telepática. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page